O QUINTO CÂNTICO – RELATÓRIO-REFLEXÃO SOBRE A EXECUÇÃO DO FILME DE MESMO NOME

1 – Introdução

Como parte integrante da avaliação da disciplina Direção I do curso de graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Pará, foi delegada pelo Prof. Alex Damasceno a tarefa de execução de um filme em curta-metragem, obrigatoriamente inspirado em um poema do poeta paraense João de Jesus Paes Loureiro, e preferencialmente filmado dentro dos limites geográficos do Campus Universitário do Guamá, em Belém.
Inicialmente foi composta a equipe, integrada pelo autor deste, Scylla Lage da Silva Neto, Carmen Elena, Genard Silva e Lauro Henrique Feio.
Após reuniões sucessivas para a escolha do poema, a mesma recaiu sobre Cântico V, publicado em Obras Reunidas, Editora Escrituras, São Paulo, 2000.
Marcadas as datas, cada integrante do grupo partiu para a sua decupagem de direção do poema, visando imprimir suas impressões individuais sobre o projeto, tanto no referente à técnica, quanto ao estilo e à teoria envolvidos na concepção do filme.

2 – O poema

Cântico V

Rio
De muitos nomes,
Ser
De muitas formas e fomes.
Espelho contra espelho
Rio só na linguagem.
Rio sim, sêmen de Deus.
Amazonas
Água e lama
Vogais e consoantes.
Que outro rio corre no teu leito,
Se outro rio corre no teu nome?
Rio, superfície de si mesmo
E Mar além de si.
Água antes de si.
(Inexistência)
Aceitação do vago transitório,
Nunca o mesmo,
O que uma onda sempre noutra
Vaga...
O sempre aquém amando ser-além,
Embora rio-agora quer ser rio-depois,
E escadaria de ilhas subir até o mar,
Quando contém o mar em cada gota, maré,
Predestinando rio em si crucificado.
(Porantim)

3 - Sobre o equipamento

Seguindo a tendência de trabalhos anteriores do autor e de Lauro Henrique Feio, foi optado por utilizar para a filmagem o princípio da Fotografia Computacional, usando exclusivamente um smartphone iPhone 7 Plus, modelo 2017, munido de câmera de 12 Megapixels, com resolução de 4608 x 2592 pixels e abertura F 1.8, com ajuste para gravação em High Definition (1080 pixels a 60 quadros por segundo), estabilização óptica e zoom óptico 2x.
Para as tomadas em câmera lenta, o ajuste de gravação foi feito a 120 e a 240 quadros por segundo, e para as demais tomadas, a 60 quadros por segundo.
A Fotografia Computacional utiliza softwares para simular diferentes lentes, aberturas de íris e sensibilidades, buscando reproduzir a qualidade de câmeras profissionais de fotografia e de filmagem.
Este princípio parece tender ao crescimento nos próximos anos, uma vez que fabricantes tradicionais de câmeras, como a alemã Red, já têm smartphones-filmadoras em pré-venda, com a promessa de qualidade igual ou superior às filmadoras convencionais utilizadas profissionalmente.
Para o nosso projeto, O Quinto Cântico, foi optado pelo software FILMIC Pro, versão 6.4.1 (Build 846).

4 – Do onírico

Interpretar um poema é sonhar, individual- e poderosamente, reciclando e ressignificando palavras em novas palavras, palavras em imagens e sons, imagens e sons em pensamentos e sonhos.
Assim, a partir do poema supramencionado, veio a ideia de fluxo, de rio, de vida, de elasticidade temporal, e da inexorabilidade da finitude das nossas vidas, diante da natureza e do planeta Terra.

5 – Do estilo

Na escolha dos princípios que regeram a composição de O Quinto Cântico, buscando coesão entre os diferentes participantes do projeto, foi optado pelo estilo realista-subjetivo.
No que se concebe a mise-en-scène, o cenário natural, à beira-rio, em que se descortina o campus da UFPA, já gera por si só um ambiente de cunho algo impressionista, com contrastes fornecidos pela generosidade das plantas, das matas, do próprio Rio Guamá, largo e caudaloso, e pela riqueza de elementos naturais.
Nos dois dias de filmagem a iluminação foi fornecida por forte luz solar matutina, filtrada em alguns momentos por um céu ligeiramente nublado, determinando uniformidade na cine-fotografia.
Não houve interpretação, e os seres humanos que apareceram no filme o fizeram ao acaso, fazendo parte do fluxo, tanto dos planos quanto do rio que os margeava.
Na decupagem foi optado por fazer contraposição de imagens quase paradas, contemplativas, de água estagnada ou em movimento, em primeiro plano e montadas de forma rítmica, com imagens em plano geral, com a execução de travellings em slow motion, justapostos ao Igarapé Tucunduba e ao próprio Rio Guamá.
Quanto ao roteiro, a alternância entre os tipos de planos mencionados acima teve como objetivo revelar a nossa perplexidade quanto à força da natureza, quanto ao nosso caráter de expectativa temporal diante da grandiosidade do fluxo inexorável do rio: enquanto humanos envelhecem e objetos se deterioram, o rio segue, passivo porém algo ativo, seu caminho até o mar. Assim o planeta o pede e determina.
Houve aqui espaço para a experimentação no campo plástico, principalmente através da alternância dos planos, alguns em montagem métrica, outros contrastando pelo prolongamento do tempo dos travellings em slow motion.
Em relação à trilha sonora foi optado por usar músicas eletrônicas da década de 1970, sem a adição do som direto captado na filmagem, reforçando o propósito de fazer sonhar e de fazer refletir.
As músicas escolhidas foram Another Green World (de Brian Eno; do disco Another Green World; 1975) e Luftschloss (de Brian Eno, Dieter Moebius e Hans-Joachim Roedelius; do disco After The Heat; 1978).

6 – Da Teoria

Transformar um poema, um texto a princípio “não-filmável”, em um filme original, requer metodologia e reflexão constantes para que não se gere rompimento com o espírito da obra original, herdando assim grande parte de sua qualidade artística.
No nosso mundo contemporâneo, dominado por imagens em movimento de rápida edição e vida curta nas plataformas multimidiáticas, a poesia de João de Jesus Paes Loureiro surge forte e serena, se destacando como um marco de autenticidade na literatura da Amazônia e do Brasil, a ser ressignificado neste projeto e divulgado para as gerações atuais e vindouras.
Na confecção deste filme houve preocupação constante em relação à autoria, oscilando entre o pensamento do crítico cinematográfico norte-americano Andrew Sarris de que o diretor se torna responsável pela obra, assumindo assim a sua autoria e buscando elevar os valores do belo poema Cântico V, e o do filósofo francês Roland Barthes, que protagoniza a morte do autor no momento da transformação de uma obra em outra, do poema no filme.
O mundo em transformação assim parece exigir, e Cântico V (poema) foi transformado em O Quinto Cântico (filme), conferindo o poder ao espectador de dar novo sentido à obra resultante.

7 – Das dificuldades e do resultado final

Trabalhar em equipe neste projeto de direção cinematográfica, reunindo quatro pessoas de idades, interesses, gostos cinematográficos e literários diversos, revelou-se como um desafio desde as primeiras reuniões para a determinação do embasamento teórico a ser cumprido.
Muitos caminhos surgiram e acabaram por se mostrar contraditórios, principalmente na escolha dos planos que representariam partes específicas do poema, e houve muitas discussões a este respeito, na maioria da vezes bem frutíferas, apesar de prolongadas e algo exaustivas.
Quatro diretores, um poema e um filme, no entanto, funcionaram bem quando enfrentaram a prática juntos.
O Rio Guamá, com sua magnitude e sua quietude de quem flui por milênios em seu indefectível curso, acabou funcionando como catalisador de ideias e testemunha da transformação das palavras em frames, conservando os sentimentos.
Ideias se moldaram, com respeito e cooperação entre os membros da equipe de filmagem, e no final sobraram emoções quando da percepção da manutenção do fluxo contemplativo de Cântico V em O Quinto Cântico.

8 – Conclusão

Como o Rio Guamá, o “vago transitório” e as “vogais e consoantes” presentes no poema de Paes Loureiro acabaram por invadir os pensamentos e sentimentos de cada um dos membros da equipe de filmagem, e com eles, além da reflexão técnica e prática da transformação de uma obra literária em cinematográfica, conforme pretendido pelo comando do exercício em questão da disciplina Direção I, trouxeram a certeza expandida de que as emoções que nos diferenciam como espécie habitante deste planeta nos farão zelar por ele, Guamá, e por todos os outros fluxos d’água.

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